I. O Fenômeno da Legislação Reativa e o Impacto Midiático no Direito Digital Brasileiro
O histórico legislativo brasileiro demonstra uma tendência marcante: episódios midiáticos de grande repercussão frequentemente atuam como catalisadores para a aprovação de leis digitais que, de outra forma, poderiam permanecer estagnadas no Congresso. Esse fenômeno, conhecido como legislação reativa, estabeleceu um padrão no direito digital nacional.
Exemplos notáveis incluem o vazamento de fotos da atriz Carolina Dieckmann, que levou à alteração do Código Penal para tipificar crimes digitais (Lei Carolina Dieckmann), o caso Edward Snowden (descrito no filme Snowden), que culminou na promulgação do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014). De maneira similar, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), Lei nº 13.709/2018, foi impulsionada pela controvérsia internacional do caso Cambridge Analytica, expondo o uso indevido de dados o qual está relatado no documentário Privacidade Hackeada.
Em 2025, o Brasil testemunhou a repetição desse ciclo com o Caso Felca. As denúncias realizadas pelo youtuber expuseram falhas sistêmicas na proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital, especialmente em relação à adultização e exploração comercial.
Embora o tema já fosse reconhecidamente relevante e carecesse de regulamentação, foi apenas após o Caso Felca que, em menos de um mês, o Estatuto da Criança e do Adolescente Digital (ECA Digital) — Lei nº 15.211/2025 — foi sancionado. A nova legislação ressalta que a experiência internacional já havia evidenciado a insuficiência da autorregulação das plataformas digitais, e que a ausência de dispositivos legais específicos resultou em consequências graves. Assim, o pacote de medidas aprovado em 2025 representa uma resposta direta do Estado brasileiro, voltada à promoção de maior segurança digital e ao fortalecimento da regulação independente.
II. O Caso Felca: A Exposição Sistêmica da Exploração Infantil e o “Algoritmo P”
As denúncias de Felca trouxeram à luz a crescente e chocante prática de pais que expõem e produzem conteúdo sobre seus filhos menores de idade visando a monetização, o que frequentemente resultava na adultização ou sexualização desses jovens. Essa prática contraria frontalmente os marcos nacionais e internacionais de proteção à infância.
Os casos recentes envolvendo crianças e adolescentes na internet escancaram uma realidade alarmante sobre os riscos da exposição precoce e da exploração digital. O caso Bel Para Meninas trouxe à tona o impacto psicológico devastador da superexposição infantil nas redes sociais. As críticas constantes e a pressão pública geraram traumas profundos, reforçando a máxima de que “criança não tem que estar envolvida em coisa de adulto”.
Já o episódio envolvendo Camilynhha e Ítalo Santos revelou um cenário ainda mais perturbador: o condicionamento de uma adolescente a um ambiente sexualizado, onde sua imagem era tratada como mercadoria para consumo adulto. A gravação de um procedimento estético — um implante de silicone aos 17 anos — para fins de exibição pública exemplifica a objetificação e a perda de autonomia sobre o próprio corpo.
Por fim, o caso de Caroline Dreher escancarou o extremo da perversão e da ganância. A mãe, responsável pela administração dos conteúdos da filha entre 11 e 14 anos, comercializava material explicitamente criminoso e sexual em grupos privados no Telegram. A situação ultrapassa os limites da negligência, configurando exploração infantil em sua forma mais cruel.
Esses episódios não apenas chocam, mas exigem reflexão urgente sobre os limites da exposição digital, o papel da família e a responsabilidade coletiva na proteção da infância.
Talvez o ponto mais técnico e alarmante da denúncia tenha sido a revelação do “Algoritmo P” (Predador). Felca demonstrou, na prática, que o algoritmo das redes sociais pode ser rapidamente condicionado para entregar vídeos de crianças em formas sugestivas diretamente a pedófilos. Criminosos utilizam códigos como “trade” (troca) ou “link in bio” (perfil no Telegram) para compartilhar Child Pornography (CP), aproveitando-se do descaso ou má-intenção das plataformas.
Importante destacar que o youtuber desativou a monetização do seu vídeo, o que deu credibilidade e caráter altruísta à Felca que segue sendo perseguido por desvelar o episódio.
III. O Estatuto da Criança e do Adolescente Digital e o Dever de Cuidado
A Lei Nº 15.211, de 17 de Setembro de 2025 (ECA Digital), nasce como resposta direta a essa realidade, focando na proteção integral e na prevalência dos interesses de crianças e adolescentes no ambiente online. A lei entra em vigor em seis meses após sua publicação.
O ECA Digital se alinha a marcos internacionais, como o Comentário Geral N° 25 (2021) do Comitê dos Direitos da Criança da ONU, que exige que o “melhor interesse da criança” seja uma consideração primordial em relação ao ambiente digital. O dever de proteção recai sobre famílias, Estado e toda a sociedade, incluindo explicitamente as empresas de tecnologia.
A nova legislação representa um avanço significativo na proteção da infância no ambiente digital, ao impor obrigações diretas e ousadas aos fornecedores de produtos e serviços online. Inspirada no princípio de “direitos das crianças por design” (children’s rights by design), ela estabelece que a segurança e o bem-estar dos menores devem ser considerados desde a concepção das plataformas.
Entre as principais exigências, destaca-se a verificação de idade, que obriga as empresas a implementarem mecanismos confiáveis para impedir que crianças e adolescentes acessem conteúdos impróprios. Essa medida visa criar barreiras efetivas contra a exposição precoce a materiais inadequados.
Outro ponto fundamental é a supervisão parental. As plataformas devem oferecer ferramentas acessíveis e intuitivas para que pais e responsáveis possam acompanhar, limitar e gerenciar o uso dos serviços. Isso inclui a possibilidade de restringir a comunicação com usuários não autorizados e controlar funcionalidades que incentivam o uso excessivo, como o autoplay e as notificações constantes.
A legislação também proíbe de forma categórica a monetização e publicidade direcionada voltadas a menores. É vedado o uso de perfilamento para fins comerciais, bem como qualquer forma de impulsionamento de conteúdo que retrate crianças ou adolescentes de maneira erotizada ou sugestiva.
Por fim, estabelece o dever de remoção de conteúdo ilícito, obrigando os fornecedores a excluir e reportar imediatamente às autoridades qualquer material relacionado à exploração, abuso sexual, sequestro ou aliciamento de menores.
Essa nova abordagem legislativa sinaliza um compromisso firme com a construção de um ambiente digital mais ético, seguro e respeitoso para a infância.
O Comentário Geral N° 25 da ONU, comentado de forma brilhante pelo Instituto Alana, já havia determinado que o perfilamento ou publicidade direcionada para crianças, com base em registro digital de suas características, deve ser proibido por lei.
A nova lei brasileira atende a essa recomendação internacional, que visa proteger crianças da exploração comercial e de práticas baseadas em neuromarketing, análise emocional e publicidade imersiva em ambientes de realidade virtual e aumentada.
IV. Empresas sob Pressão: Os Desafios da Conformidade
A promulgação do ECA Digital impõe um novo e rigoroso conjunto de obrigações às empresas que oferecem produtos ou serviços digitais com potencial de acesso por crianças e adolescentes. A conformidade com a Lei Nº 15.211/2025 exige transformações estruturais significativas, que abrangem desde a arquitetura tecnológica até práticas comerciais e de governança de dados.
Um dos principais pontos de atenção é a verificação de idade. A legislação determina que as empresas adotem mecanismos tecnicamente seguros, auditáveis e proporcionais para aferir a idade dos usuários, proibindo o uso exclusivo da autodeclaração. Além disso, a coleta de dados deve ser estritamente limitada à finalidade de verificação, em consonância com os princípios da Lei Geral de Proteção de Dados, o que impõe um desafio adicional de compatibilização entre segurança e minimização de dados.
Outro eixo crítico é o design ético e a proteção contra a exploração comercial. A privacidade e a segurança devem ser incorporadas desde a concepção dos produtos e serviços. A legislação proíbe o uso de perfis infantis para fins publicitários, bem como a monetização de conteúdos que retratem menores de forma erotizada ou sugestiva. Também veda o uso de técnicas persuasivas que induzam crianças e adolescentes à exposição excessiva de dados ou à desativação de salvaguardas.
As empresas também são obrigadas a disponibilizar ferramentas de supervisão parental acessíveis e eficazes. Tais recursos devem permitir que pais e responsáveis limitem comunicações com terceiros, controlem funcionalidades potencialmente viciantes — como reprodução automática e notificações excessivas — e vinculem as contas de menores de até 16 anos às suas próprias.
No que diz respeito à remoção de conteúdo ilícito, a lei impõe o dever de retirada imediata e comunicação às autoridades competentes de qualquer material que envolva abuso, exploração sexual, sequestro ou aliciamento de menores. A responsabilidade também se estende à remoção de conteúdos que violem direitos de crianças e adolescentes, mediante notificação de vítimas, representantes legais ou órgãos de defesa.
Por fim, o prazo de vacatio legis de apenas seis meses representa um desafio adicional, especialmente para pequenas e médias empresas, que terão de implementar mudanças profundas em um curto espaço de tempo. A exigência de accountability — ou seja, a demonstração ativa de conformidade — reforça a necessidade de planejamento estratégico e investimento em governança digital.
V. Pais em Novo Papel: Entre Supervisão e Autonomia
O ECA Digital inaugura uma nova era na proteção de crianças e adolescentes no ambiente virtual, ao redefinir o papel das famílias dentro de um modelo de corresponsabilidade que envolve o Estado, a sociedade civil e o setor privado. A figura dos pais, antes vista como única responsável pela segurança digital dos filhos, passa a ocupar uma posição de parceria ativa, com atribuições específicas e apoio institucional.
Nesse novo cenário, os pais devem utilizar de forma efetiva as ferramentas de controle parental disponibilizadas pelas plataformas digitais. Esses recursos permitem limitar interações indesejadas, controlar funcionalidades potencialmente viciantes e vincular contas de menores às dos responsáveis legais, promovendo um ambiente mais seguro e supervisionado.
Ao mesmo tempo, é necessário equilibrar a proteção com o respeito à autonomia progressiva dos filhos. A legislação reconhece que crianças e adolescentes têm direito ao desenvolvimento de sua privacidade e liberdade de expressão, o que exige dos pais uma postura empática, orientadora e não autoritária. O desafio está em proteger sem sufocar, guiando sem controlar excessivamente.
O consentimento parental, exigido pela LGPD para o tratamento de dados pessoais de crianças, permanece como requisito legal, mas não é suficiente por si só. Em determinadas situações, esse consentimento pode inclusive contrariar o melhor interesse da criança, especialmente quando os pais não possuem conhecimento técnico adequado ou são influenciados por práticas comerciais enganosas. A assimetria de informação entre responsáveis e empresas reforça a necessidade de cautela e supervisão regulatória.
Tem-se que a alfabetização digital dos pais torna-se uma prioridade estratégica. Para que possam exercer seu papel de forma efetiva, é fundamental que recebam apoio por meio de políticas públicas de capacitação, campanhas de conscientização e acesso a informações claras sobre riscos, direitos e deveres no ambiente digital. Sem esse suporte, a corresponsabilidade se torna frágil e a proteção dos menores, incompleta. Um desafio em um país de baixa escolaridade média.
VI. O Fortalecimento Institucional: ANPD como Agência Reguladora
Reconhecendo que a regulação é ineficaz sem fiscalização robusta, o Governo Federal implementou medidas para fortalecer a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). A ausência de dispositivos legais já causou danos graves restando comprovado que a autorregulação é insuficiente.
A Medida Provisória Nº 1.317/2025 e o Decreto Nº 12.622/2025 marcaram um ponto de inflexão na estrutura regulatória brasileira ao fortalecer a fiscalização do novo marco legal voltado à proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital.
A MP Nº 1.317/2025 promoveu uma transformação significativa ao elevar a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) ao status de Agência Reguladora. Com isso, a ANPD passou a contar com autonomia funcional, técnica, decisória, administrativa e financeira, consolidando-se como uma entidade independente e estratégica na regulação da proteção de dados no país.
Complementando essa mudança, o Decreto Nº 12.622/2025 atribuiu à ANPD a competência exclusiva para atuar como autoridade administrativa autônoma na proteção de crianças e adolescentes em ambientes digitais. A ANPD tornou-se, assim, o órgão central responsável por interpretar e estabelecer normas e diretrizes voltadas à segurança e privacidade dos dados pessoais de menores, articulando a cooperação entre os diversos atores do setor.
Para viabilizar essa nova estrutura, o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) apoiou um robusto processo de reestruturação organizacional. Sem aumento de despesa, foram transformados 797 cargos efetivos vagos, resultando na criação de 200 cargos de Especialista em Regulação de Proteção de Dados, além de 26 cargos em comissão e funções de confiança. Essa iniciativa conferiu à ANPD uma capacidade técnica e estabilidade institucional inéditas, essenciais para a implementação eficaz das novas disposições legais.
Anteriormente à reestruturação, a ANPD possuía apenas quatro servidores dedicados à fiscalização de dados em todo o Brasil (de um total de 152 entre servidores e terceirizados), tornando-se evidente a necessidade de fortalecimento para lidar com a complexidade e a escala do ambiente digital.
A ANPD faz um excelente trabalho nos aspectos regulatórios e educacionais. Entretanto, a parte fiscalizatória é tímida e até hoje somente um pequeno telemarketing foi multado no valor de R$ 14.400,00 (quatorze mil e quatrocentos reais) e os entes públicos pouco aprenderam com as sanções que tiveram, vide INSS e Dataprev. O desafio é colocar a legislação em prática, fiscalizar, para que a norma tenha a devida eficácia.
VII. O Poder de Sanção e a Transferência da Responsabilidade
O fortalecimento da ANPD garante à agência instrumentos adequados para regular, fiscalizar e sancionar de forma efetiva o descumprimento das normas do ECA Digital e da LGPD.
Em consonância com as sanções previstas na Lei Geral de Proteção de Dados, o descumprimento das novas regras pode levar à aplicação de multa simples de até 10% do faturamento da pessoa jurídica (grupo ou conglomerado no Brasil) no último exercício, limitada a R$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais) por infração. Há, ainda, a previsão de suspensão parcial ou total do funcionamento do banco de dados ou a proibição parcial ou total do exercício de atividades relacionadas ao tratamento de dados no país.
O Brasil, ao sancionar o ECA Digital e estruturar a ANPD como uma agência reguladora independente, reafirma o compromisso do Estado em colocar a proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital.
Mais, em a medida provisória sendo convertida em Lei, o Brasil terá, enfim, uma Agência Supervisora Independente o que torna como país de elevado nível em privacidade e proteção de dados pessoais, o que é de suma importância, mormente para transferência internacional de dados.
Resta saber se a ANPD, agora Agência Reguladora, independente, terá uma postura mais ativa no que tange à fiscalização. Já as empresas têm um tempo muito curto para fazer as adaptações impostas pelo ECA DIGITAL. O fato midiático que levou a sanção da norma em menos de um mês e com pouco debate parlamentar encurrala as empresas e pais a se adaptarem à norma com tempo escasso.
Referências:
ALANA. Comentário Geral nº 25 sobre os direitos das crianças em relação ao ambiente digital: versão comentada. São Paulo: Alana, 2022. Disponível em: https://alana.org.br/wp-content/uploads/2022/11/Comentario-Geral-No-25-sobre-os-direitos-das-criancas-em-relacao-ao-ambiente-digital-Versao-Comentada.pdf. Acesso em: 26 set. 2025.
FELCA. A adultização infantil nas redes sociais. [Vídeo]. YouTube, 25 set. 2025. Disponível em: https://youtu.be/FpsCzFGL1LE. Acesso em: 26 set. 2025.
PRIVACIDADE HACKEADA. Direção: Karim Amer; Jehane Noujaim. Estados Unidos: Netflix, 2019. Disponível em: https://www.netflix.com/br/title/80117542. Acesso em: 26 set. 2025.
SNOWDEN. Direção: Oliver Stone. Estados Unidos: Open Road Films, 2016. Disponível em: https://www.primevideo.com/-/pt/detail/Snowden/0NHF2PS2PDAZUNPQUPB5SCL3R6 . Acesso em: 26 set. 2025.
Por Luiz Felipe Vieira de Siqueira, Doutorando em Inovação & Tecnologia – PPGIT UFMG e Pesquisador Think Tank ABES
Parabéns pela brilhante informação. Tempos difíceis que exigem vigilância, atenção e entendimento dos limites legais.